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Rios voadores, o fenômeno climático nascido na Amazônia que ajuda a irrigar o Brasil

Força do fenômeno depende de cada árvore em pé que compõe o bioma. Porém, o avanço do desmatamento e das queimadas tem alterado o equilíbrio hidrológico e enfraquecido os rios aéreos. Mesmo assim, a floresta ainda tem potencial para continuar prestando serviços ambientais valiosos.

Mayara Subtil 27/05/2023

Intactas, as árvores são capazes de absorver carbono da atmosfera, produzir alimentos, abrigar inúmeras espécies e proporcionar uma série de serviços ambientais. Porém, cada uma que tomba, diminui a habilidade do bioma em produzir chuva ao país. Foto: Reprodução / Doc. Rios Voadores

Imagine rios abundantes, com bilhões de toneladas de água, só que viajando pelos céus. É água que garante safras recordes no campo, abastece moradias em cidades populosas e enche reservatórios de usinas hidrelétricas. Tudo isso de graça. No Brasil, boa parte desse abastecimento depende literalmente do suor de centenas de árvores que compõem a imponente floresta amazônica. A transpiração da selva dá origem ao que os cientistas chamam de Rios Voadores, massas de ar carregadas de vapor tão poderosas quanto o maior rio do mundo em volume d’água.

O volume de vapor d’água que deixa a Amazônia ao sul da bacia é equivalente ao volume do rio Amazonas, 210 a 220 mil metros cúbicos por segundo, essa é a vazão do rio Amazonas, 220 também quando a gente soma a foz do rio Tocantins com o rio Amazonas, e é esse volume imenso de vapor d’água que deixa a floresta. E isso só é possível porque a floresta está reciclando permanentemente a chuva”,

explicou o climatologista Carlos Nobre.

A chuva reciclada pela floresta chega à Amazônia carregada por ventos úmidos que sopram do Oceano Atlântico. A umidade do mar precipita sobre a região e penetra no solo. É a partir daí que começa a reciclagem. Sob o calor intenso do sol, a vegetação formada por bilhões de árvores transpira, devolvendo umidade para a atmosfera.

Estudos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) indicam que uma única árvore de grande porte consegue transpirar até mil litros de água por dia. “Quando se pensa na Amazônia, em geral se pensa em árvores. Milhões, bilhões de árvores. Essas árvores também não são estéticas, são dinâmicas. As árvores respiram, as árvores transpiram”, lembrou o cientista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), José Marengo.

A umidade gerada pela intensa transpiração das árvores abastece rios invisíveis que percorrem os céus da Amazônia em direção à Cordilheira dos Andes. Lá, uma parte dessa umidade, barrada pelo paredão de 4 mil metros de altura, precipita e forma as cabeceiras dos rios amazônicos. Outra parte faz a curva e segue para países vizinhos e regiões mais ricas do Brasil, ajudando a garantir reservas de água aos estados no Centro-Oeste, Sul e Sudeste.

As árvores, a sucessão de plantas e a interação dessas plantas com temperatura, vapor e vento, todas parecem estar sincronizadas umas as outras, talvez por meio da evolução biológica. Dependem uns dos outros e modificam o clima para produzir condições nas quais essas florestas e pântanos possam prosperar. E no outro extremo do limite você tem desertos secos e mortos. Portanto, preservar as árvores é fundamental”,

disse John Schull, co-fundador da EcoRestoration Alliance.

Equilíbrio hidrológico sob ameaça

A Amazônia produz seu próprio clima. E é a mesma umidade que forma os rios voadores. O ciclo da água no Brasil depende em boa parte do bioma amazônico, e no quesito recursos hídricos, o país é privilegiado, pois é dono de 12% de toda a água doce disponível no mundo. Só que tudo isso está sob ameaça.

“Em alguns lugares podemos dizer que o Brasil está secando. No caso da Amazônia, é a superfície de água natural. E ele é ocasionado por duas coisas: a primeira é o próprio aquecimento global que a temperatura já cresceu 1,1C a média. No caso do Brasil, esse aumento foi de dois graus. O segundo motivo é a redução da força dos rios voadores na Amazônia. O enfraquecimento dos rios voadores por conta do desmatamento, somado às mudanças climáticas, está gerando essa situação”, detalhou Tasso Azevedo, coordenador do Mapbiomas.

A alta da temperatura do planeta faz com que as estações seca e chuvosa fiquem irregulares. Segundo especialistas, hoje em dia ou se tem estiagens mais longas ou o registro de chuvas torrenciais, muitas vezes até fora de época. E o desmatamento, sobretudo na Amazônia, agrava ainda mais o cenário, pois há menos árvores fazendo o trabalho de devolver umidade para a atmosfera. Com isso, os rios voadores ficam menos volumosos.

Quando se suprime a mata nativa, nós não temos mais a reposição de umidade na atmosfera ou se reduz muito essa reposição. Isso faz com que ao longo do trajeto dos rios voadores haja uma redução no volume de chuvas. E isso já vem acontecendo. Na região central do Brasil, várias hidrelétricas já estão sofrendo nos últimos 10/12 anos com uma redução drástica na quantidade de água disponível”,

detalhou Pedro Côrtes, professor de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (USP).

As queimadas também interferem no fenômeno, pois provocam alterações da formação das nuvens. E o cenário de menos chuvas e menos umidade no solo também favorece a proliferação das chamas. “Fuligem associada às queimadas é capaz de levar a um aquecimento interno das nuvens e a evaporação das gotas. Ou seja, você passa a ter aí uma situação em que você favorece que o ciclo de vida das nuvens seja abreviado”, explicou o ambientalista Alexandre Costa.

A Organização das Nações Unidas (ONU) já fez o alerta: se o ritmo seguir assim, secas extremas na Amazônia vão impulsionar a migração para as cidades, situação que ameaça a existência de povos tradicionais, como os indígenas. A degradação ambiental pode também fazer com que a Amazônia tenha reduzida sua capacidade de prestar serviços ambientais.

O valor das árvores

Mas quanto vale uma árvore em pé? Intactas, elas são capazes de absorver carbono da atmosfera, produzir alimentos, abrigar inúmeras espécies e proporcionar uma série de serviços ambientais. Porém, cada uma que tomba, diminui a habilidade do bioma em produzir chuva ao país. Se é queimada, pior ainda, pois libera para a atmosfera o carbono que demorou décadas para estocar durante a tarefa de limpar o ar.

“Os serviços ambientais vão além da questão do carbono. A gente tem esse papel fundamental que a floresta desempenha para o equilíbrio do regime de chuvas; local na Amazônia; regional e até beneficiando outros países, outras regiões. Se a gente tiver a inteligência de avaliar o valor agregado por cada árvore, em cada um desses caminhos, carbono, o ciclo de águas e a importância da biodiversidade, aí a gente tem uma combinação muito virtuosa”, explicou o especialista em clima Carlos Rittl.

Manter árvores em pé é estratégico para um país que precisa de chuva na lavoura, de reservatórios de água abastecidos o ano todo e de ecossistemas equilibrados e capacidades de produzir benefícios para a sociedade. Além disso, a própria atividade de preservação florestal traz oportunidades de ganhos econômicos diretos, que podem ser estimuladas, por exemplo, com ação governamental.

Tem que ter um projeto de desenvolvimento regional mesmo para a região, que implique em muito investimento em ciência e tecnologia, muita valorização dos produtos locais, dos saberes das comunidades locais, né, os recursos da sociobiodiversidade, para a produção de fármacos, para a exploração correta de produtos alimentícios”,

detalhou Suely Araújo, especialista em Políticas Públicas do Observatório do Clima.

O projeto de construção do Centro de Bioeconomia e Conservação da Amazônia, previsto para funcionar em 2025 nas proximidades da hidrelétrica Santo Antônio, em Rondônia, é uma iniciativa que caminha nesta direção. A parceria entre o Instituto Amazônia +21, o Centro de Estudos Rioterra e a Santo Antônio Energia prevê a construção de um centro de pesquisa científica, além da produção de 2 milhões de mudas de espécies nativas por ano para reflorestamento.

“Pensar em regeneração de florestas, não necessariamente apenas na recomposição da paisagem natural, originária, mas também admitindo outras possibilidades de geração de negócios, porque o Instituto Amazônia +21 tem absolutamente isso identificado por meio de tecnologias próprias de parceiros para que a gente possa ampliar as possibilidades de geração de negócios no território amazônico de maneira absolutamente sustentável”, explicou o diretor do Instituto Amazônia+21, Marcelo Thomé.

Outra aposta está na expansão do manejo florestal sustentável para frear o fluxo clandestino de madeira, causador do desmatamento ilegal. Em um único projeto, o BNDES vai injetar mais de R$ 2 milhões no manejo comunitário de floresta nativa em cinco localidades do Amazonas, onde também serão capacitados 150 moradores.

Estamos construindo estratégias para que o manejo florestal, que a indústria que usa a madeira possa migrar dessa situação irregular – que nós temos hoje – para uma situação não só regular como sustentável, gerando emprego e renda com segurança e mantendo a floresta em pé. Vai ser um ganho muito grande, para o mercado que utiliza a madeira, a população que vai passar a ter acesso a empregos e renda de qualidade, e o resultado de preservação da nossa floresta e da biodiversidade”,

disse Tereza Campello, diretora Socioambiental do BNDES.

Além disso, um decreto de 3 de maio assinado pelo presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, promete impulsionar a pesquisa no Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), que foi rebatizado e passou a se chamar Centro de Bionegócios da Amazônia. A estrutura sediada em Manaus, no Amazonas, deixa de ser vinculada à Suframa e será gerida por uma organização social, com personalidade jurídica própria.

Assim, o CBA terá mais autonomia para captar recursos públicos e, principalmente, de empresas beneficiadas com os incentivos fiscais da Zona Franca, e que têm obrigação de destinar dinheiro para pesquisas na região. “

“É impressionante. Na área de alimentos, um quilo de cacau e de amêndoas custa R$ 10. Um quilo de chocolate custa R$ 200. Temos um potencial. O pirarucu ganha, no ano, 15 quilos de peso. É fantástico o potencial na área farmacêutica, química, cosmética e alimentícia dessa biodiversidade”, destacou o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin.